Lídia Jorge
“Em Portugal só os homens muito cultos lêem ficção”
Isabel Lucas
27/03/11 11:32
Trinta anos e 15 romances depois, Lídia Jorge não se quer curar da dor que a leva a procurar refúgio na escrita.
Em finais dos anos 80 alguém troca a erudição pela visibilidade. Neste romance feito da memória recua 21 anos para contar uma espécie de mudança de valores tendo como pano de fundo uma história de amor e lá, no livro, a narradora e protagonista, no monólogo que faz, lança a pergunta: quantas pessoas é preciso magoar para se chegar a um objectivo? É uma pergunta sua?
A ambição é de sempre. Ambição de ser mais do que os outros aconteceu em todas as épocas, mas este tipo de ambição é que é novo, tem um enquadramento civilizacional novo e pode servir-se apenas de um malabarismo qualquer que dita a exposição.
A ambição é a da fama e a da visibilidade.
Exactamente. E independentemente do mérito. O único mérito é ter habilidade para chegar à exposição. Há aqui ingredientes que são típicos de uma geração, uma espécie de experiência ainda rudimentar em relação àquilo que se vive hoje. Havendo 21 anos de intervalo é possível olhar para trás e comparar, e quando se compara o passado é sempre cómico.
Essa tal geração que tem agora 40 anos inaugurou este protótipo de conduta?
Sim, de vivência de exposição e de afirmação pública, e ainda não veio outra.
É a era o vazio?
Como dizia o Lipovetsky? Não penso que seja o vazio. Há é realidades diversas, de grande intimidade, de grande valorização da experiência pessoal. As sociedades de hoje estão feitas de todos esses ingredientes. Há traços extraordinariamente positivos em todos os campos, mas eles não são o veículo da notícia.
Não estão visíveis.
Não. Mas as sociedades de hoje evoluem e são sustentadas precisamente sobre esses pilares anónimos, mas de grande fortaleza. Não posso dizer que seja uma grande era de vazio. Não concordo. É uma era de grande proliferação de mensagens, tantas e tais que nos sentimos perdidos entre elas. É muito mais uma questão de abundância onde não somos capazes de nos colocar porque há uma espécie de guerra que se estabelece entre vários segmentos. Segmentos de sociedade e segmentos de comunicação e nós sentimo-nos sem capacidade de encontrar linhas de rumo dos valores, sem saber onde nos colocar e o que escolher. Mas não tenho nada a ideia de que se está vivendo num mundo simplificado ou num mundo vazio.
Como chegou à ideia deste livro?
Surge do contacto que fui tendo ao longo do tempo com pessoas que hoje podem falar de uma forma muito exuberante sobre essa sua experiência no canto, nas artes de representação que exigem muito da pessoa. Fui tendo contacto com pessoas que podiam falar sobre a sua existência, sobre a sua vida, sobre o seu sonho, sobre esse tipo de vida que tiveram como uma espécie de acto cómico da sua existência. Achei que o discurso cabe a muita gente. Não só desta geração, mas de todas as gerações que em determinado momento têm um sonho muito grande e depois o sonho se esfarela, se deflagra por várias razões. Até pelo viver. Viver deflagra.
Teve algum desses sonhos que se tivesse deflagrado?
Sim. Tive vários sonhos que se foram deflagrando, mas o meu sonho sempre maior foi relacionado com a escrita e canalizei tudo para aí. Não digo que seja uma vencedora em termos de escrita, sei é que é o meu amparo de vida. Talvez vencer na escrita seja encontrar leitores que digam: "isto diz-me respeito". Haver um eco. Os leitores sentirem que alguém escreveu por eles o que eles pensaram mas não encontraram as palavras exactas. Trazer emoções reconhecíveis e inscrevermos em clãs, em grandes companhias de gente, sentir que fazermos parte, entrarmos em clubes de identificação, em gerações de identificação. Não nos sentimos sozinhos. Sentimos que fazemos parte de um grupo à volta de uma página e essa página é o pensamento de um grupo. Para mim esse é o maior reconhecimento. Sentir que há essa fusão com os contemporâneos. Depois tudo isso passa por outros graus. Esse meu sonho não morreu. Continuo há 30 anos e sinto que fui uma pessoa feliz e acho que os escritores meus colegas que têm a mesma sorte e os outros artistas de outras áreas é muito gratificante isso e que as pessoas mesmo quando sabendo disso que a arte e a literatura responde aos anseios mais íntimos que nós temos, faz com que muitas pessoas triunfantes em áreas como a ciência ou a política queiram escrever o seu livro de ficção. Acho isso muito interessante.
O facto de toda a gente querer ser escritor?
Também toda a gente quer ser pintor. Está muito próximo.
Mas não teme que isso banalize a escrita ou a profissão de escritor?
Isso banaliza, mas quem escreve livros não deve ter medo que os outros escrevam. Acho que depois da confusão, as obras que têm densidade, as que respondem aquilo que é a dúvida que as gerações vão colocando e as perplexidades, vão permanecendo e vão respondendo a muitas gerações.
Acha que vai permanecer?
Não tenho certeza de nada e nem posso pensar nisso. Era como se a centopeia pensasse nos seus pés. Para andar a centopeia tem de imaginar que não tem tantos pés. Se pensasse ela tropeçava, não conseguiria. Eu desejaria aquilo que qualquer escritor deseja: que haja algumas páginas, algum livro dos seus que ainda fale daqui a muitas gerações. Nós desejamos isso. Eu desejo isso.
É o inevitável desejo de imortalidade?
Exactamente. É o que sinto. O inevitável desejo de imortalidade. É aquilo que uma pessoa num outro domínio quando tem um filho diz: "Eu não morro porque os meus traços continuam". Outras pessoas querem deixar uma casa com objectos. A nossa vida pelo menos prolonga-se por mais um tempo. A escrita é uma pulsão muito forte.
As suas histórias são normalmente muito interiores mas nunca sem uma contextualização social. Este livro não foge à regra.
Quando começo a escrever acho sempre que vou apenas escrever sobre o ser das pessoas, sobre a emoção, sobre aquilo que chamamos as histórias ontológicas. O amor, a morte, a esperança, os sete pecados capitais, as virtudes. O que acontece é que tenho um imaginário social forte e a questão da contextualização vem do temperamento. No meu caso, o ser revela-se no contacto com o outro e é muito revelado no contraste entre o que se recebe e o que se merece do outro.
Desde "O Dia dos Prodígios", há 30 anos, até este "A Noite das Mulheres", mudou alguma coisa no seu processo de escrita?
O processo continua a ser semelhante. Eu gostaria de ter encontrado uma fórmula. De facto, a forma de encontrar o livro vai sempre sendo diferente. Cada livro ensina de uma maneira, cada livro exige uma entrada diferente. Uma coisa é como o livro aparece e outra é como ele se desenrola. E ele desenrola-se sempre de um modo diferente, mas aparece sempre de forma muito semelhante.
Como?
Persiste a certa altura uma espécie de imagem teatral em que figuras falam, entendem-se e desentendem-se e começam a ter um corpo e uma voz própria e perseguem-me na minha cabeça durante muito tempo. Por vezes aparecem várias em simultâneo e é preciso escolher. É o célebre momento da deliberação que a pessoa tem de ter. Percebi que aquelas que são melhores, que irão dar um projecto, são as que têm alguma coisa de extraordinariamente atraente cujo fim ainda não descobri, não sei para que servem, mas não consigo afastar.
É seduzida por elas?
Sou. E elas têm de ter alguma coisa também de repulsivo e que é preciso eliminar. E é nessa tensão, nessa duplicidade, nessa coisa dupla, ambivalente que encontro os elementos para poder começar a escrever.
E quando se dá esse começo?
Quando começo a escrever à mão em cadernos, as primeiras frases. Sobretudo as primeiras frases que correspondem a vozes das personagens. E isso é alguma coisa que não consigo ultrapassar: pôr a minha voz dentro de outras personagens e esconder-me e não ser eu directamente. Tenho medo de dizer "eu". Todos os eus que eu escrevo não são meus. Preciso dessa espécie de actores que digam o que eu não quero dizer nunca directamente. Não me bastam.
É medo de se revelar?
Não. Sou suficientemente avisada para perceber que passados 15 livros a pessoa acaba por se ter deixado, aos pedaços, ficar lá dentro. Não é preciso escrever nenhuma autobiografia. A Agustina dizia que a história é uma ficção controlada. Nós sabemos que a ficção é da nossa história descontrolada. A nossa história pessoal sob descontrolo, que não queremos revelar por inteiro, mas parte do pensamento, parte das nossas máscaras. E há uma espécie de ideia lúdica de que fazendo esse jogo dramático com as figuras, sentimos felicidade. De certa forma enviamos para outros aquilo que não queremos dentro de nós. A tensão que não conseguimos manter dento do nosso coração. Essa tensão com tantas partes em movimento-nos liberta-nos.
Como numa sessão de psicanálise?
Mas com uma grande diferença. A psicanálise tem como objectivo ultrapassar uma dor. E aqui também existe em parte o desejo de ultrapassar a dor, e consegue-se, mas a finalidade é outra. A finalidade última não é ultrapassar a dor, porque sabemos que ela não se ultrapassa verdadeiramente. Ela regressa sempre. Nós não nos queremos curar como quando se vai ao psicanalista. Queremos é encontrar a beleza que conduza à criação da obra. A histeria que nos conduz à criação. No caso da escrita, o que me interessa é que a dor seja suportável, mas que ela encontre
os elementos fundamentais para os transformar numa coisa de beleza. A dor
só passa se for encontrado um objecto de beleza. Isto é um fadário, mas é um bom fadário. Para o psicanalista o literário é um meio, para nós é o absoluto. Um fim que não tem outro fim senão esse. É também o que nos distingue da religião. A diferença enorme entre o discurso religioso e o discurso poético é que o discurso religioso se sacia a si porque encontra uma verdade.
Interessa-lhe esse discurso religiosos?
Interessa-me mas não fico nele. Transformo-o num espaço de dúvida,
de disputa, de causa e de perscrutação do porque é que nós queremos a existência de Deus.
A Lídia quer?
Queria muito. Deus nunca falou comigo.
Nunca o encontrou.
Não o encontrei mas pergunto por ele. Porque encontro uma espécie de intervalo, uma falta de sentido. Não vejo onde está deus. Pergunto. Achava que se o encontrasse teria uma felicidade enorme porque faria sentido. Haveria um sentido. Mas o discurso literário procura um sentido sem a certeza, enquanto que o discurso religioso tem a certeza. É um discurso magnífico porque atingirá sempre um ponto de segurança.
E o discurso literário é exactamente oposto. A única coisa certa e é tão relativa, mas mesmo assim, é chegar a páginas em que dizemos são belas. E isso é tão efémero, porque amanhã as mesmas páginas não têm beleza nenhuma. É tão diferente e tão poderoso. O discurso literário é tão poderoso porque não vale nada, porque não tem certezas.
Não é útil.
Não tem utilidade. Não serve literalmente para nada. Em Portugal só os homens cultos lêem ficção. Os homens muito cultos. Os outros estão imbuídos de uma ânsia de realismo.
Quando diz homens falado género masculino.
Sim. As mulheres são mais atreitas a romancear. Ao sonho. Não expurgam o sonho para o exterior. Os homens têm o sonho como nós temos, mas expurgam-no. São muito mais educados para mostrar apenas mais a parte pragmática e passam o dia a esconder a outra parte. É um iceberg enorme de sonhos, mas como o Livro do Desassossego diz, há pessoas para quem o sonho não encontra formas longas e alongadas, complexas, por isso muitos homens sentam-se imediatamente à mesa para comer, ou beber um whisky em frente do pôr do sol ou possuir imediatamente uma bela mulher. É a sua forma imediata de concentrar a beleza. De atingir a beleza, de realizar o sonho. Enquanto que quem está habituado à literatura e à arte sabe que existem mil degraus e que mesmo esses são mais duráveis e sublimes e se houver outros mil degraus intermédios a beleza e a alegria serão sempre maiores.
Trinta anos depois, lê o seu primeiro livro?
As vezes com surpresa. É um livro grandemente imperfeito. Há pouco tempo, foram lidos excertos e percebi que de facto surpreendeu-me que eu tivesse escrito esse livro quando tinha 30 anos.
Pela maturidade?
E a ideia de que os processos que ainda hoje uso são todos filhos desse processo. São uma continuação, agora depurada, simplifiquei, tornei-me mais realista e mais psicológico, mas aquele livro, sendo simbólico, acho que estão ali as chaves do que eu viria a ser.
É um bom livro para começar a ler Lídia Jorge?
Não.
Qual é?
Talvez "O Vale da Paixão". Um livro central. Mais simples, mais curto e muito daquilo que são os meus dados ficcionais e que depois pode a partir daí voltar-se
para trás e ir-se para diante. Ele é um livro para uma porta de entrada para os leitores que querem ir para livros mais ou menos difíceis.
Em que categoria enquadra este?
Esse é daqueles que talvez tenha um arco de escrita mais facilitador. É mais clássico. A parte imagética e a parte metafórica está limada. Está mais contida. Deixei-me seduzir sobretudo pela lógica das figuras e dos seus impulsos e pelo desvendar da trama. Não é a escrita que é preponderante. As personagens, o ambiente, a história, o clima emocional são o mais importante.
Qual é o caminho para a ficção?
Poderemos ter uma percepção. Mas perante toda uma escrita de efabulação é natural que imaginemos que o romance se sature de si mesmo que queiramos ir para a efabulação mais filosófico. O romance a evoluir no sentido do ensaio ou da própria ficção se pensar a si própria, algo que faz já há cem anos, desde que aparece o modernismo. Mas o que me parece é que o mais moderno de sempre vai ser ficcionar a própria vida. E isso vai ser sempre o mais moderno. É um impulso tão primário como vermos e narrarmos o que vemos. Faz parte da nossa estrutura de pensamento. Ficcionar da vida. Uma reportagem sobre a vida não a entregando como ela foi, mas colocando entre o que é e o que a gente pensa que poderia ser, o nosso desejo. Colocarmos aí a nossa fantasia. Isso é primário. É básico e nunca vai ser retirado. Podemos é efabular sobre o fim do mundo, pode ser o grande tema, e esse não é o medo do fim do mundo, que também é o desejo de inaugurar o mundo. E isso deixa-me muito calma. Não nos devemos preocupar com o caminho para onde vai. É hoje. O que podemos ver é o caminho onde temos.
Entevista completa em: http://economico.sapo.pt/noticias/em-portugal-so-os-homens-muito-cultos-leem-ficcao_114264.html
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